[BARDI ensaio]
Marina Correia é formada em arquitetura pela The City University of New York, possui mestrado em arquitetura pela Harvard University Graduate School of Design e doutorado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Seu escritório, Atelier de Arquitetura e Desenho Urbano, com sede no Rio de Janeiro e em Nova York, apoia ações de democratização da cultura e da educação, desenvolvendo projetos nas áreas de arquitetura, desenho urbano e expografia. Desde 2017 lecionou projeto em The City University of New York, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Harvard Graduate School of Design e Rhode Island School of Design.
Contos de Invisibilidade
O projeto da exposição Lina em Casa: Percursos, que marcou a abertura do acervo da casa da arquiteta ao público, foi concebido logo após a abertura de uma exposição ainda maior de sua obra em Munique, em 2014: Lina Bo Bardi 100: O Caminho alternativo do Brasil ao Modernismo. Eu fui convidada pelo Museu de Arquitetura da Universidade Técnica de Munique (TUM) para projetar a exposição na Pinakothek der Moderne, e em seguida por Anna Carboncini, ex-diretora do Instituto Bardi/Casa de Vidro, para o desenho da exposição em São Paulo.
Img.01 – Galeria Principal.
Lina Bo Bardi 1oo Exposição na Pinakothek der Moderne. Munique 2014. Autor: Marina Correia
Minha conexão com o Museu de Arquitetura da TUM se deu através de Andres Lepik e Harvard University Graduate School of Design, onde fui aluna. Lepik foi membro da Loeb Fellowship, sua trajetória era marcada pela exposição Small Scale, Big Change no MoMA, inaugurada em 2010. Logo após sua chegada a TUM, ele buscou meios de trazer a obra de Lina Bo Bardi para Munique. Ele me procurou como possível apoio para estabelecer uma comunicação local mais direta para viabilizar a exposição. Acompanhei entrevistas, visitas a arquivos e boa parte das conversas sobre curadoria e conteúdos que serviram de base para o que se tornaria a maior exposição internacional da arquiteta até então. Eu havia desenvolvido uma pesquisa aprofundada sobre o trabalho de Lina Bo Bardi durante meus estudos acadêmicos, o que me ajudou a navegar os diferentes projetos, atores e narrativas envolvidos. Esse papel e a fé de Andrés em abrir espaço para uma geração mais jovem de arquitetos fizeram com que ele confiasse a mim o projeto da exposição em Munique.
A exposição Lina Bo Bardi 100: o Caminho alternativo do Brasil ao modernismo na Pinakothek der Moderne reuniu cerca de 100 desenhos originais da arquiteta e foi lançada em 2014 em comemoração ao seu centenário. A narrativa idealizada pela curadora Vera Simone Bader e por Andres Lepik foi cronológica. O projeto da exposição foi entendido como um desafio de tradução cultural, pois visava aproximar o mundo de Lina Bo Bardi – histórias entre a Itália, o norte e o sul do Brasil – ao público local da Pinakothek.
O projeto expositivo buscou criar um fundo neutro para a exposição dos desenhos de Lina Bo Bardi. Outra estratégia importante foi criar momentos de pausa e transições, para que o visitante permanecesse engajado apesar da extensão da exposição e sua densidade. As transições também sugeriam uma sensação de descoberta. Alguns momentos de antecipação foram previstos, de modo que o visitante pudesse espreitar o que vinha a seguir, através de uma pequena abertura ou de uma grande fotografia vista de longe. As cores neutras também visavam destacar os desenhos coloridos de Bardi, sem competir. Um tom entre branco e bege foi escolhido para as paredes, dialogando com as luzes para criar uma atmosfera calma e doméstica. A materialidade empregava, em contraste, a tecnologia de impressão local de ponta e materiais de construção simples e brutos. Paredes de papel suspensas apresentavam a voz curatorial e o conteúdo fotográfico. Paredes grossas de Y-Tong, longas e baixas, traziam desenhos originais da arquiteta, além de fotos, vídeos e textos.
Img.02 – Escrita na parede durante a montagem da exposição.
Lina Bo Bardi 1oo Exposição na Pinakothek der Moderne. Munique 2014. Autor: Juliane Kownatzki
Um grupo de cinco estudantes de arte – Elisabeth Bauer, Andreas Gallasch, Christin Kummerer e Kathrin Marx – guiados pela artista de Berlin Juliane Kownatzki e pela designer paulistana Ana Marini, escreveram o texto curatorial à mão em papel e pedra. Os erros foram registrados por uma linha horizontal cruzada, que desafiava a destreza da maioria das exposições até então executadas naquele espaço. A experiência transformou a montagem da exposição em um ateliê de arte.
O trabalho do fotógrafo Markus Lanz também foi central para o ambiente da exposição. Markus documentou a maioria dos edifícios incluídos na exposição em seu estado atual, com atenção especial aos seus usuários e rotinas cotidianas. Tive a oportunidade de acompanhá-lo à Igreja de Santa Maria dos Anjos e ao Teatro Oficina. Sua apreensão do espaço incluía o tempo das conexões humanas: contato e imersão nas vidas dentro e ao redor dos edifícios. Esse interesse, de imprimir cultura nas fotografias, pareceu-me em perfeita sintonia com a sensibilidade de Lina Bo Bardi.
Img.03 – Passagem desobstruída com instalação de som.
Lina Bo Bardi 1oo Exposição na Pinakothek der Moderne. Munique 2014. Autor: TUM
O projeto expositivo também envolveu estratégias sonoras através do trabalho do artista sonoro brasileiro Edson Secco. Edson gravou os sons do SESC Pompéia e criou ambientes sonoros para alguns momentos da exposição. O primeiro à entrada da exposição, onde se ouvia a fala de Lina Bo Bardi em portugês com forte sotaque italiano. Também foi proposta uma instalação sonora ao longo de uma passagem que marcou a transição da arquiteta de São Paulo para a Bahia. A passagem era um túnel vazio que minimizava e redefinia a percepção visual após duas grandes salas de conteúdo expositivo. Sons da cidade de São Paulo gradualmente davam lugar aos sons da natureza e das batidas afro-brasileiras, onde os projetos em Salvador foram apresentados. A experiência final da exposição foi o SESC Pompéia, uma das mais recentes obras construídas de Lina Bo Bardi. A instalação sonora foi colocada ao nível do ouvido do visitante em posição horizontal e deitada. Um vídeo still do principal espaço de convivência foi projetado no teto. Uma maquete, desenhos, fotografias e objetos do SESC Pompéia conviviam com a instalação naquele mesmo espaço, que marcou o encerramento da exposição. A vivacidade do espaço, transformado por certa informalidade e suaves superfícies horizontais, contribuiu para aproximar os visitantes do espaço arquitetônico retratado.
Img.04 – Salão SESC Pompéia com projeção no teto e som.
Lina Bo Bardi 1oo Exposição na Pinakothek der Moderne. Munique 2014. Autor: TUM
A exposição Lina Bo Bardi 100, através de estratégias materiais e imateriais de projeto, procurou estimular a empatia entre os vários públicos da Pinakothek e a obra da arquiteta.
Logo após a abertura da exposição em Munique, o projeto da exposição Lina em Casa: Percursos na Casa de Vidro se apresentou como uma tarefa ainda mais desafiadora. Eu tinha um respeito profundo pelo edifício, seu legado histórico e as múltiplas camadas de memória ainda presentes em seu interior. De vários modos, minha abordagem novamente teria a ver com uma espécie de invisibilidade.
Img.05 – Sala de estar com estandes de exposição.
Lina em Casa: Exposição Percursos na Casa de Vidro. São Paulo 2015. Autora: Marina Correia
O projeto da exposição Lina em Casa: Percursos foi desenvolvido com a intenção de preservar a experiência espacial e a atmosfera singular da Casa de Vidro. Entendendo a Casa como o maior objeto de interesse do visitante e legado da arquiteta a ser apreendido, a organização dos suportes expositivos evitou criar subdivisões espaciais que pudessem gerar uma sobreposição de arquiteturas. O projeto da exposição foi apresentado através do que não deveria ser. Dois desenhos simples apresentaram as estratégias evitadas e serviram para convencer os curadores do que não deveríamos fazer.
Img.06 – Renderização 3d do projeto de exposição proposto.
Lina em Casa: Exposição Percursos na Casa de Vidro. São Paulo 2015. Autora: Marina Correia
O layout proposto era ao mesmo tempo meticuloso e aberto. Os expositores foram posicionados de forma a evitar a demarcação de novas espacialidades no interior da Casa, permitindo vários percursos não lineares ao longo da exposição. Essa configuração influenciou o título da exposição “percursos.” O projeto também implicou em uma outra forma de conciliação: a decisão de quais objetos e móveis deveriam ser mantidos e quais deveriam ser removidos. Consideramos criteriosamente como objetivo principal a preservação do ambiente da casa, abrindo apenas o espaço necessário para o conteúdo expositivo e circulação do público.
Img.07 – Sala de estar com estandes de exposição.
Lina em Casa: Exposição Percursos na Casa de Vidro. São Paulo 2015. Autora: Marina Correia
Os expositores compunham uma família de objetos feitos em tubo de aço, acrílico e MDF. Busquei uma materialidade mínima para manter a transparência, de forma que o aparato expositivo não gerasse interrupções visuais. O conjunto modular foi extraído da proporção das portas existentes, 80x210cm. O primeiro módulo é um cubo de 80 cm. O segundo, vertical, tem a dimensão frontal da porta (não coincide com o caixilho da janela, que é mais elevado) e profundidade mínima para manter a estabilidade. Dentro dessa leve moldura estruturante, foram suspensas caixas e painéis de acrílico. Nelas, desenhos originais, documentos, fotografias, objetos e texto se alternavam. Os expositores modulares eram desmontáveis para armazenagem. Eles foram reorganizados em outras exposições na casa e em outras instituições culturais.
Uma reflexão sobre o alcance das exposições de arquitetura sempre nos leva a um impasse metalinguístico: uma intervenção espacial sobre o espaço é como um livro sobre escrita, ou uma música sobre harmonia. Como arquitetos, somos convidados a imaginar sequências espaciais capazes de promover uma consciência mais aguçada do próprio lugar, do estar lá. A invisibilidade é uma posição de recúo, um desenho “de mão leve” através do qual a arquiteta silencia a intervenção espacial para aumentar a apreensão do conteúdo, entendido tanto como voz curatorial e como o lugar em si.